"Identidade é movimento, é desenvolvimento do concreto. Identidade é metamorfose. É sermos o Um e um Outro, para que cheguemos a ser Um, numa infindável transformação".
Antonio da Costa Ciampa
Podemos imaginar as mais diversas combinações para configurar uma identidade como uma totalidade. Uma totalidade contraditória, múltipla e mutável, no entanto, una. Por mais contraditório, por mais mutável que seja, sei que sou assim, ou seja, sou uma unidade de contraditórios, sou uno na multiplicidade e na mudança.
Quando nossa unidade é percebida como ameaçada, quando corremos o risco de não saber quem somos, quando nos sentimos desagregando, temos maus pressentimentos, temos o pressentimento de que vamos enlouquecer; aprendemos a ter horror de sermos "outro".
Diferença e igualdade. É a primeira noção de identidade. Sucessivamente, vamos nos diferenciando e nos igualando conforme os vários grupos sociais de que fazemos parte: brasileiro, igual a outros brasileiros, diferente dos estrangeiros (nós os brasileiros somos... enquanto os estrangeiros são...); homem ou mulher, os exemplos podem se multiplicar indefinidamente.
O conhecimento de si é dado pelo reconhecimento recíproco dos indivíduos identificados através de um determinado grupo social que existe objetivamente, com sua história, suas tradições, suas normas, seus interesses.
Mas, se é verdade que a identidade é constituída pelos diversos grupos de que se faz parte, esta constatação pode nos levar a um erro, qual seja o de pensar que os substantivos com os quais nos descrevemos (“sou brasileiro”, “sou homem”, etc.) expressam ou implicam uma substância ("brasilidade", "masculinidade", etc.) que tornaria um sujeito imutável, idêntico a si mesmo, manifestação daquela substância.
A resposta a pergunta: "Quem sou eu? "é uma representação da identidade. Então, torna-se necessário partir da representação, como um produto, para analisar o próprio processo de produção.
Dizer que a identidade de uma pessoa é um fenômeno social e não natural é aceitável pela grande maioria dos cientistas sociais. Com efeito, se estabelecermos uma distinção entre o objeto de nossa representação e a sua representação, veremos que ambos se apresentam como fenômenos sociais, consequentemente como objetos sem características de permanência, não sendo independentes um do outro.
Não podemos isolar de um lado todo um conjunto de elementos - biológicos, psicológicos, sociais etc. - que podem caracterizar um indivíduo, identificando-o e, de outro lado, a representação desse indivíduo como uma duplicação mental ou simbólica, que expressaria sua identidade. Isso porque há como que uma interpenetração desses dois aspectos, de tal forma que a individualidade dada já pressupõe um processo anterior de representação que faz parte da constituição do indivíduo representado.
O jogo de reflexões múltiplas que estruturam as relações sociais é mantido pela atividade dos indivíduos, de tal forma que é lícito dizer-lhe que as identidades, no seu conjunto, refletem a estrutura social ao mesmo tempo em que reagem sobre ela, conservando-a ou a transformando.
As atividades de indivíduos identificados são normatizadas tendo em vista manter a estrutura social, vale dizer, conservar as identidades produzidas, paralisando o processo de identificação pela reposição de identidades pressupostas, que um dia foram postas.
Assim, a identidade que se constitui no produto de um permanente processo de identificação aparece como um dado e não como um dar-se constante que expressa o movimento social, a história.
O homem é sempre um indivíduo social na sua gênese. Como mostra George Herbert Mead (1997), o self individual é organizado no interior do processo social e a forma de existência no interior desse processo social é fundamentalmente ativa. Mead postula a indissociabilidade entre indivíduo e sociedade.
Odair Sass (1982) apresenta nos seguintes termos a tese de Mead sobre a origem social do self : "o meio social humano pertence ao indivíduo em decorrência do caráter peculiar da atividade social humana." A ação humana, embora determinada por condições externas ao sujeito, de acordo com Sartre, aponta Sass, atravessa o meio social conservando-lhe as determinações e transformam o mundo sobre a base das condições dadas. O homem caracteriza-se antes de tudo pela superação de uma situação, pelo que ele chega a fazer daquilo que se fez dele, mesmo que ele não se reconheça jamais em sua objetivação. Tal poder do ato humano, que se traduz na tentativa de transformar as condições em que se insere, é produto da antecipação, ou melhor, da projeção desses atos. Em contrapartida, se o ato humano é projetado, portanto, ato de vontade, a transformação que objetiva não necessariamente se concretiza.
Diz Sartre que o fato da História escapar à ação humana (individual ou grupal) não decorre do fato do indivíduo ou grupo não tentarem fazê-la. O ato humano possibilita ultrapassar a situação específica sob as condições externas imediatas tanto quanto possibilita projetar para muito além do que era pretensão do autor do ato. O ato humano visa refletir a situação em que se insere, mas, fundamentalmente, modifica essa situação, retendo as condições dadas.
Mead (1997) considera que as relações do homem com as pessoas que o cercam são exatamente o que constituem o homem. Suas relações com os membros de sua família fazem dele o que ele é. Por vezes, tem-se atribuído à organização familiar a base para explicar as diferenças entre os seres humanos e os animais. Contudo, esta explicação não é, no sentido de Mead (1997), genética, pois o problema consiste em explicar como foi possível a organização familiar no sentido humano, sendo incorreto supor a família como a unidade distintiva da vida social. O que se deve "ter em conta é a organização fundamental da sociedade humana em torno de uma pessoa (self) ou de pessoas (selves)."
Portanto, é a possibilidade do desenvolvimento do indivíduo em termos de uma pessoa (self), dentro do processo social de interação, que marca distintamente a sociedade humana.
A complexificação dos processos humanos significa precisamente a metamorfose da dimensão biológica em dimensão psicológica em decorrência da ação social sob o indivíduo. Nesse nível podemos falar em psicologia, em psicologia social, e em pessoa (self) antes do que indivíduo. Para Mead (1997), na psicologia social o todo (a sociedade) é anterior à parte (o indivíduo). O movimento é do todo às partes, do social ao individual.
Para tomar-se como objeto, o indivíduo (o self) deve se atuar sobre o meio social. Este atuar só pode ocorrer quando se cria e recria suas atitudes reorganizando-as. O indivíduo (o self) só pode fazer isso, isto é, reorganizar, como um "sujeito em si", pela adoção da atitude do outro e pela organização em si mesmo e pela modificação que exerce no mundo exterior (no outro). Para ter consciência de si, o indivíduo tem que ter incorporado a atitude do outro.
Mead (1997) explica a formação em desenvolvimento do self em termos do "eu" e do "mim".·.
O que é denominado por Mead de "mim" é o que aparece na experiência imediata do self ao adotar a atitude do outro. O "eu" é a reação do indivíduo à atitude do grupo com o qual interage tal como esta atitude aparece na sua consciência. Por sua vez, sua reação a esta atitude organizada modifica-se. Em outras palavras o "mim" é como se dá a adaptação do indivíduo ao mundo, é adoção da atitude do outro generalizada. O "eu" é como o indivíduo reage ao mundo, reação ao outro generalizado, alterando-o como consequência.
Quando nos integramos a um grupo, atuamos como "mim" na medida em que assumimos as normas desse grupo. Ou seja, assumimos este "outro generalizado". Mas atuamos também como "eu" na medida em que interferimos e introduzimos modificações neste grupo.
O esforço de Mead (1997) em diferenciar as fases constitutivas do self o "eu "e o "mim", coloca o indivíduo como ser ativo na sua relação com a sociedade. Para Mead, o indivíduo não é, pois, algo definido a priori, não é apenas um corpo fisiológico em que se instala o bem e o mau da sociedade, nem é o ser onipotente que individualmente cria a sociedade. Ao mesmo tempo, a individualidade está preservada, pois, como demonstra Mead, o ser individual se constitui num singular, diferente de todos os outros. O sujeito para Mead não é algo que se define em si, mas que se define a partir do outro.
O conceito de outro generalizado é central na análise de Mead, porque é o referencial social da experiência individual. O que dá consistência à vida individual é a unidade do self, isto é, a relação harmônica entre o "eu" o "mim". O outro generalizado é a forma concreta com que a sociedade opera sobre o indivíduo. Constitui um elemento de mediação entre o indivíduo entre a sociedade.
Com a distinção dos conceitos do "eu" e do "mim", fica claro que as experiências inéditas ocorrem na forma singular (o indivíduo) mas, para alcançar a universalidade, precisam do reconhecimento dos outros membros da sociedade. Daí, do ponto de vista histórico, novas formas de organização de vida podem criar personalidades de novos tipos.
Por isso, a identidade do Eu pode se confirmar na capacidade que tem o indivíduo de construir, em situações conflitivas, novas identidades, harmonizando-as com as identidades anteriores, agora superadas, com a finalidade de organizar, numa biografia peculiar, a si mesmo e às próprias interações, sob a direção de princípios e modos de procedimentos universais.
Unidas, as fases do self formam o aparato racional do indivíduo. Os "comportamentos desviantes" podem assim ser analisados na ótica da história social daquele que os emite, isto é, do modelo social do self.
A teoria social do self sustenta que o complexo sistema nervoso central humano, em que repousam complexas relações do homem com o meio exterior, é a resultante histórica das interações entre o homem e o meio, e não um pressuposto para que tais interações se efetuem.
O homem é o indivíduo social no sentido de sua gênese e também no sentido de sua existência conjunta no interior de sua estrutura social. Berger e Luckmann expõem que há dois fulcros principais que dizem respeito à descrição do fenômeno da identidade: a sociedade como realidade subjetiva e objetiva.
Todo indivíduo nasceu em uma estrutura social objetiva, dentro da qual encontra outros significativos que se encarregam de sua socialização. Estes outros significativos lhe são impostos e as definições dadas por estes à situação dele apresentam-se como a realidade objetiva.
Estes autores afirmam que não é possível falar de identidade sem referir-se à sociedade específica na qual se concretiza que não é possível estudar a identidade de forma "mecânica" e ter dela uma visão a-histórica, destituída de seu conteúdo social e político. "A identidade permanece ininteligível a não ser quando é localizada em um mundo."
As sociedades têm histórias no curso das quais emergem particulares identidades. Estas histórias, porém, são feitas por homens com identidades específicas. "As estruturas sociais históricas particulares engendram tipos de identidade, que são reconhecíveis em casos individuais."
A importância de Berger e Luckmann (1997) evidencia-se também na contextualização da identidade, ou seja, sua inteligibilidade dentro de uma história, em relação a uma localização no mundo. Isto implica que qualquer teorização sobre a identidade deve estar inserida numa interpretação mais ampla da realidade, ou seja, que existe aqui um processo em contínuo movimento.
O homem é produto e produtor do social, num mundo onde natureza e sociedade encontram-se numa dialética que se manifesta em cada indivíduo.
A identidade é evidentemente um elemento chave da realidade subjetiva. E tal como toda realidade subjetiva, acha-se em relação dialética com a sociedade.
A identidade é formada por processos sociais. Uma vez cristalizada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relações sociais. Os processos sociais implicados na formação e conservação da identidade são determinados pela estrutura social. Inversamente, as identidades produzidas pela interação do organismo, da consciência individual e da estrutura social reagem sobre a estrutura social dada, mantendo-a, modificando-a, ou mesmo remodelando-a.
A análise que Berger e Luckmann (1997) fazem sobre a socialização implica a possibilidade de a realidade subjetiva ser transformada. Estar em sociedade já acarreta um contínuo processo de modificação da realidade subjetiva; portanto, falar a respeito da transformação, apontam estes autores, implica a discussão dos diferentes graus de modificação. Concentrar-se-á aqui, no caso extremo, naquele que há uma transformação quase total, isto é, no qual o indivíduo "muda de mundo".
Caracteristicamente, a transformação é apreendida subjetivamente como total. Isto, evidentemente é uma compreensão errônea, acentuam eles, uma vez que a realidade subjetiva nunca é totalmente socializada e não pode ser totalmente transformada por processos sociais. O indivíduo terá, no mínimo, o mesmo corpo, e viverá no mesmo universo físico. Entretanto, existem casos de transformação que parecem totais, quando comparados com modificações menores. Estas transformações eles chamam de alternações.
A alternação exige processos de ressocialização. Esses processos assemelham-se à socialização primária. A estrutura de plausibilidade deve tornar-se o mundo do indivíduo, deslocando todos os outros mundos, especialmente o mundo em que o indivíduo "habitava" antes de sua alternação. Um indivíduo que executa a alternação desengaja-se de seu mundo anterior e da estrutura de plausibilidade que o sustentava, se possível, corporalmente e quando não, a segregação é estabelecida por definição, ou seja, por uma definição dos outros que o aniquila.
A biografia anterior a alternação é caracteristicamente aniquilada in totum, sendo envolvida numa categoria negativa que ocupa uma posição estratégica no novo aparelho legitimador. Sendo a nova realidade, e não a antiga, que agora lhe aparece como dominantemente plausível, pode ser perfeitamente "sincero" nesse procedimento. Subjetivamente, não está mentindo a respeito do passado, mas fazendo-o harmonizar-se com a verdade, que necessariamente abrange tanto presente quanto passado.
Na ressocialização, o passado é reinterpretado para se harmonizar com a realidade presente, havendo a tendência a reprojetar vários elementos que subjetivamente não eram acessíveis naquela época. Na socialização secundária o presente é interpretado de modo a manter-se numa relação contínua com o passado, existindo a tendência a minimizar as transformações realmente ocorridas. Dito de outra maneira, a realidade básica para a ressocialização é o presente; para a socialização secundária é o passado.
Antonio da Costa Ciampa (1987) analisa a identidade como metamorfose e a metamorfose como vida e ainda evidencia a sua preocupação com a questão da conservação da vida, do respeito a ela, o que propõe normas éticas com pretensões de validade universal.
Ciampa, ao analisar a categoria identidade, apresenta que tanto a atividade quanto a consciência e a (repetindo) identidade são categorias fundamentais para a Psicologia Social estudar o homem, e, mesmo que se destaque uma na análise que se faça das relações da identidade subjetiva e objetiva, "parece impossível analisar uma sem recorrer às outras(...)."
Ele afirma que o indivíduo é o que faz e o fazer é sempre atividade no mundo, portanto, o indivíduo não é algo, mas é o fazer em relação com outros. Assim, torna-se necessário vermos o indivíduo não mais isolado, como coisa imediata, mas sim como relação. Desta forma, o que determina o indivíduo se evidencia, ou seja, o que o nega, pois efetivamente o indivíduo "é determinado pelo que não é ele".
Quando Ciampa (1987) afirma que o homem como ser histórico e como ser social é um horizonte de possibilidades, ele diz que está pensando em todas as dimensões do tempo. "Mesmo um fato ocorrido, que é definitivamente irrecorrível, tem desdobramentos e significados imprevisíveis, bem como transformações infindáveis.
De um lado, o homem é ser-posto; de outro, é a vir-a-ser." Assim a identidade, como concreto, está sempre se concretizando, e sua concretude nos leva a sua temporalidade: passado, presente e futuro. Tanto que o ficar no ontem é tão absurdo quanto ignorá-lo, e o mesmo se estende para o hoje e o amanhã. Não ignorando, portanto, o amanhã, Ciampa assinala que o desejo no homem pode concretizar-se como projeto, e não é porque um projeto não se realiza que não é real (como projeto).
Contudo, o desenvolvimento da identidade não depende apenas da subjetividade, mas depende também da objetividade. "Por isso, o homem é desejo. Por isso, o homem é trabalho." O ser-para-si é busca da autodeterminação, que faz do agir uma atividade finalizada, relacionando desejo e finalidade, pela prática transformadora de si e do mundo.
Este texto é parte integrante da minha pesquisa acadêmica intitulada “A reconstrução da identidade do ex-presidiário e sua reintegração à sociedade”, tendo como orientação a interface do Direito com a Psicologia, ciências as quais serviram de base e referencial teórico para a minha formação profissional.
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